O governo brasileiro viciou-se em confundir estatísticas
com realidades. Está escrito em algum papel oficial? Então é verdade. Como
fomos todos informados pela presidente Dilma Rousseff, não há mais miseráveis
no Brasil desde o dia 31 de março, quando foi riscado do cadastro federal o
nome do último cidadão brasileiro com renda inferior a 70 reais por mês. A
partir daí, quem ganha 71 mensais deixou de ser miserável, pois para a ciência
estatística a miséria acaba naqueles 70 reaizinhos — ou cerca de 1,25 dólar por
dia, pela média dos critérios internacionais. Daí para a frente o sujeito é
promovido a pobre e deixa de incomodar tanto.
“O cadastro foi
zerado”, anunciou Dilma. Conclusão: como não existem mais nomes no cadastro,
não existem mais miseráveis no Brasil. Ah, sim, ainda há um probleminha com
gente que ganha menos de 70 reais por mês e que não estava inscrita na lista
oficial; é mera questão de tempo até o governo encontrar todo mundo, dar um
dinheirinho a mais para eles e acabar não apenas com a “miséria cadastrada”,
como falam os técnicos do Palácio do Planalto, mas com o problema inteiro.
Nada disso faz
nexo no mundo do bom-senso, mas o governo tomou-se dependente de um outro vício
— massagear números aqui e ali e fazer uso deles para tratar como retardado
mental todo brasileiro que foi à escola, prestou um pouco de atenção às aulas e
acabou aprendendo alguma coisa. O problema de meter-se por essa trilha é que,
com frequência, os especialistas em fazer mágicas aritméticas têm de
experimentar o próprio veneno. Acaba de acontecer, mais uma vez, com as últimas
cifras da ONU sobre o índice de Desenvolvimento Humano em 187 países — uma
medida que informa o nível de bem-estar da população, e não da “economia”. em
termos de vida saudável, acesso ao conhecimento e padrão de vida decente,
traduzido em dinheiro no bolso do povo.
O Brasil pegou
o 85° lugar em 2013, dezesseis postos abaixo do Cazaquistão e outras potências
do mesmo quilate. Não é um desastre. É apenas aquilo que realmente somos — a
mediocridade em estado puro. Só na América Latina, ficamos atrás de Argentina,
Chile, Uruguai. Cuba, Panamá. México, Venezuela e Peru, com a Colômbia
prometendo passar à frente já no próximo levantamento. Sobra o quê, aqui em
volta? Só os casos de subdesenvolvimento que já estão num leito de UTI.
A coisa não
para aí. Já que o negócio é ficar refogando números, como a presidente Dilma
tanto gosta, por que não servir a salada inteira? Em 1980, mais de vinte anos
antes de o ex-presidente Lula decidir que o Brasil tinha sido inventado por
ele, o IDH brasileiro era de 522, numa escala que começa no zero e chega ao
máximo de 1000; subiu sem parar nesse tempo todo, chegando a quase 700, ou
perto de 35% a mais, no Ano I da Nova História do Brasil — 2003 —, quando Lula
começou sua primeira Presidência.
Nestes dez anos
de Lula, Dilma e PT, o índice foi para os 730 onde está hoje. Mais: durante os
dois anos do governo Dilma, o IDH brasileiro ficou perto do nível de pressão
zero por zero. com crescimento praticamente nulo. O que toda essa tabuada está
dizendo, no mundo das coisas reais, é o contrário do que diz o mundo da
propaganda oficial: com a sexta ou sétima maior economia do mundo em volume, o
Brasil simplesmente não consegue repassar o bem-estar dessa grandeza, nem de
longe, para os brasileiros que a constroem.
O governo,
assim que recebeu os últimos números, entrou no seu modo habitual de indignação
automática: a ONU está errada, as cifras são injustas etc. Quer que a população
acredite na demência segundo a qual um cidadão que ganha 71 reais por mês não é
mais miserável; ao mesmo tempo, não quer que acredite nos números da ONU. Mais
que tudo. ignora o fato de que “a revolução na renda” registrada nos governos
petistas. e patenteada como invenção pessoal e exclusiva de Lula, é uma
mentira: o mundo inteiro, mesmo nos casos mais desesperados da África, viveu
uma rápida e inédita redução da pobreza durante os dez anos de governo lulista.
De 2000 para
cá, 70 milhões de pessoas saem da miséria a cada ano pelo mundo afora. Em
apenas seis anos, de 2005 a 2011, a pobreza mundial foi reduzida em meio bilhão
de seres humanos. Desde 2003, os países pobres vêm aumentando em 5% ao ano, em
média, a sua renda per capita. De onde Lula e Dilma foram tirar a lenda segundo
a qual fizeram o que ninguém jamais havia feito? Vá com calma ao mexer em
estatísticas, presidente. É um produto que pode ter efeitos colaterais
indesejáveis.
J. R. GUZZO
PUBLICADO NA EDIÇÃO
IMPRESSA DE VEJA
Nenhum comentário:
Postar um comentário