domingo, 8 de janeiro de 2017

Doação dos Olhos


Resolvi! Vou doar meus olhos. Afinal, depois de muito pensar, cheguei à conclusão de que seria o melhor para eles.
O que eles vão fazer quando eu morrer? Se eu não os doar, eles irão comigo e apodrecerão também, não é mesmo? Não, não quero este triste fim para os órgãos que me fizeram ver maravilhas. Ainda mais os meus... Não estou querendo "puxar o saco", mas eles são ótimos. Enxergam bem à qualquer distância. Também pudera, eu os exercito bastante! Estão sempre em forma, apesar das pancadas e dos ciscos que os visitam de vez em quando.
É, vou doar meus olhos... Será o melhor para eles. Não quero, quando eu morrer, que lá em cima (ou lá embaixo?), ao me encontrar com alguém que foi cego, ficar arrependido quando ele começar a se queixar de que, por falta de humanidade, nunca conseguiu ver a terra, o mar, as plantas, as pessoas, os animais... Que não sabe como é o azul do céu e do mar, que tanto ouviu falar; Não sabe como é a beleza das flores, das mulheres, das crianças... Que por falta de visão passou por esta vida, sentiu tudo, mas não viu nada; Não pode amar uma mulher (no caso, se eu estiver conversando com algum homem) pela atração física e sim por outros porquês que a falta de visão procura "compensar", mas nunca é a mesma coisa.
Enfim: não quero ouvir o "lenga-lenga” de nenhum cego, e ficar com remorsos. Porque, se algum deles vier falar comigo, eu direi: meu amigo, eu doei meus olhos... Agora, não tenho culpa se eles não os deram a você, certo?
E também posso receber algum agradecimento de alguém que tenha sido beneficiado com meus olhos. E daí passaremos a conversar sobre o assunto:
- Como é, você gostou dos meus olhos?
- Gostei sim, rapaz. Eles eram ótimos! E olhe que eu fiquei dez anos com eles, e nunca precisei ir ao oftalmologista... E você, foi alguma vez?
- Eu fui uma vez só. É que eles estavam "minando", sabe como é, né?
- Eu sei... Eles ainda estavam com esse problema. Mas isto não era nada. Foi por você forçá-los muito...
- Ora, mas afinal, eu tinha que testá-los, não tinha?
- Tinha, mas foi demais.
- É, eu devo ter exagerado mesmo... Sim, e como foi você, o que fez com eles?
- Fiz a mesma coisa que você: doei-os novamente. Não queria vê-los estragando debaixo da terra...

A.J. Cardiais
Em 02.11.1983

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